Paridade no Judiciário

A nossa história começou assim…

O dia 30 de janeiro de 2023 amanhecia em Brasília e no aeroporto avistei algumas colegas de outros Estados correndo apressadas para um evento que já tinha se tornado tradição para quem se dedica às questões de gênero no âmbito do Poder Judiciário.

O seminário “Mulheres e Justiça: novos rumos da Resolução CNJ n. 255” foi recebido por magistradas de todo país como uma convocação com gosto de despedida, pois naquele momento já vislumbravámos que em breve haveria apenas uma mulher na Suprema Corte brasileira.

Na chegada ao STJ, que sediou o evento, uma fila enorme de magistradas de todo o Brasil, rostos conhecidos na luta por igualdade de gênero. Antes de iniciar sua fala, a Presidenta do STF e do CNJ, Ministra Rosa Weber, fez uma pausa como se olhasse nos olhos de cada uma de nós. Um silêncio que parecia rememorar toda a sua trajetória ao mesmo tempo em que tomava fôlego. Seu discurso foi claro, afetuoso, contundente:

Mulheres brilhantes e com capacidades múltiplas são categorizadas em estruturas que rechaçam ou dificultam sua participação nos ambientes decisórios de poder. Costumo sempre dizer que as mulheres são silenciadas e invisibilizadas. Não deixemos que isso aconteça. Vamos ocupar os espaços.

As palmas que se seguiram foram longas e emocionadas.

No mesmo sentido, a Ministra Cármen Lúcia fez um discurso forte e propositivo: “avancemos das ações afirmativas para ações transformativas, humanizantes e dignificantes para todas as mulheres. O tempo, agora, é de transformação”. Deixou claro que “não queremos ser representadas, queremos nos apresentar”.

Nós que estávamos na platéia ouvíamos aquelas palavras, com uma vontade imensa de fazer alguma coisa, sem saber por onde começar… Então, o professor doutor da UERJ Daniel Sarmento apresentou um parecer que apresentava uma alternativa inédita: uma política de ação afirmativa em favor de juízas de carreira para acesso aos tribunais de 2º grau. Funcionaria assim: nas promoções para os tribunais, haveria alternância de uma lista exclusiva de mulheres e de uma lista mista (de homens e mulheres) até atingir a paridade de gênero nos tribunais.

Ali já começamos a pensar na diferença que aquela ação poderia fazer em nosso país que tinha tribunais com média de 75% de desembargadores e alguns deles, nenhuma desembargadora.

Com a presença das principais associações de classe e de acadêmicas que produziram as importantes pesquisas sobre gênero no Poder Judiciário, participamos de debates e oficinas e sonhamos com um Judiciário mais diverso. No último dia do evento, ouvimos duas feministas históricas.  Hildete Melo e Schuma Schumaher integraram o Lobby do Batom e deixaram um recado para nós: “Foi difícil mudar a Constituição. Fiquem felizes porque nós conseguimos fazer muita coisa, mas não conseguimos tudo. Agora, resta a vocês que são a geração que está aí conquistar a igualdade. Vale lutar pela igualdade por nossas filhas, nossas netas. Viva as mulheres e vamos para luta, porque ainda não está completa a nossa cidadania”,  foram as palavras de Hildete Melo.

Ao final daquele dia, saímos para jantar com a cabeça a mil. No restaurante, sentei perto da Laryssa Copack, uma das coordenadoras das Antígonas, um coletivo que congregava a maioria das magistradas do TJPR e que despontava como um movimento extraordinário em prol da participação feminina.

Voltamos para nossos Estados cheias de ideias. Depois daquele encontro, não poderíamos ficar paradas! O primeiro passo foi criar um grupo de whatsapp, que já nasceu enorme!

Reunimos juízas estaduais, federais e trabalhistas e redigimos uma carta pedindo ao Presidente da República a nomeação de uma mulher para a vaga da Ministra Rosa Weber. Nossa inspiração foi a Carta das Brasileiras que foi entregue aos Constituintes de 1988. Começamos pelo whatsapp mesmo e assim chegamos a 1.656 assinaturas de magistradas e magistrados de todo o Brasil. Infelizmente o nosso esforço e de toda a sociedade civil não conseguiu alterar a realidade: com a aposentadoria da ministra Rosa Weber, a Ministra Cármen Lúcia ficou sendo a única mulher a compor o STF.

Enquanto isso, o tempo passava e em poucos meses se encerraria o mandato da Conselheira Salise Sanchotene no CNJ. Então foi pautado por ela o processo sobre a ação afirmativa que havia sido tão debatida no seminário. Começou uma articulação entre nós para irmos em peso acompanhar a votação em Brasília. Pensamos que seria fundamental mostrar como as magistradas do Brasil ansiavam pela igualdade de gênero. Veio do grupão do whatsapp a indicação de uma das maiores assessorias de imprensa do país, a Oficina Comunicação, composta majoritariamente por mulheres e que, de cara, abraçou nossa causa pro bono. Demos início a uma arrecadação para ajuda de custo para passagens aéreas. Muitas pagaram a viagem do próprio bolso. Algumas tiveram apoio das associações locais, como foi o caso de Minas Gerais.

No dia 19 de setembro de 2023 eu e mais quatro magistradas do TJMG chegamos bem cedo no CNJ e o cerimonial passou o maior aperto para fazer caber todas aquelas mulheres de todo o país que queriam entrar no plenário, com o bottom escrito Paridade no Judiciário. Estavam lá também diversos orgãos de imprensa chamados pela nossa assessoria. A cada manifestação de ícones como Ela Wiecko e Oscar Vilhena, nos empolgamos nas palmas. No momento da votação, a Ministra Rosa Weber pediu para que nos contessemos, o que foi bem difícil…

Ao dar início ao julgamento, a Ministra Rosa Weber destacou:

Embora eu compreenda a sensibilidade do tema, não devem haver tabus, precisamos debater a presença das mulheres no Judiciário. Entendo a resistência, mas o debate é necessário e voto a favor

Queríamos aplaudir de pé cada uma das brilhantes manifestações! Com uma fundamentação impecável, a Conselheira Salise trouxe um dado que não deixava dúvidas: desde 1980, a participação feminina nos tribunais tinha subido de 21% para…25%…ou seja, menos de 1% a cada 10 anos. Este e diversos outros dados reforçaram a certeza de que a simples passagem do tempo não iria alterar a desigualdade de gênero verificada de norte a sul do Brasil. Em seguida, o Conselheiro Bandeira de Mello antecipou o seu voto, conclamando todo o Conselho a dar um passo histórico: “Enquanto houver desigualdade, todos somos responsáveis por ela e por combatê-la”.

Após o pedido de vista pelo Conselheiro Richard Pae Kim, a votação foi suspensa. Na semana seguinte, no dia 26 de setembro de 2023, voltamos a Brasília. Após uma intensa articulação, saiu vencedora a proposta que previa as listas alternadas na promoção por merecimento. A ação afirmativa nas promoções por antiguidade não foi fixada pelo Conselho. Consideramos aquele um passo histórico! Comemoramos muito junto com a Conselheira Salise. 

A Desembargadora do TRF4 merece um destaque especial. Desde o começo do seu mandato buscou agregar magistradas e magistrados em um movimento coletivo de construção de um Judiciário mais diverso.

Desde o começo da sua gestão buscou um intercâmbio com a academia através do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Gênero, Direitos Humanos e Acesso à Justiça, da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (ENFAM), coordenado pela Professora e Desembargadora do TJRJ, Adriana Ramos de Mello. 

Os dados produzidos pela Juíza do TJMS Mariana Rezende Ferreira Yoshida em sua dissertação de Mestrado “Discriminação por motivo de gênero e barreiras no acesso ao segundo grau de jurisdição no Brasil por magistradas de carreira e a pesquisa coordenada pela Juíza do TJPE, Eunice Maria Batista Prado e realizada por magistradas da primeira turma do mestrado da ENFAM, em parceria com a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) “Perfil das Magistradas Brasileiras e perspectivas rumo à equidade de gênero nos Tribunais” embasaram o verdadeiro pacote de medidas voltadas para a Política de Participação Feminina do CNJ. 

Além da ação afirmativa de gênero para acesso das magistradas aos tribunais de 2º grau fixada pela Resolução CNJ 525/2023, foi prevista a paridade de gênero nas bancas de concurso pela Resolução 496/2023; condições especiais de trabalho para magistradas e servidoras gestantes e lactantes pela Resolução CNJ 481/2022 e instituído o Repositório Nacional de Mulheres Juristas pela Portaria CNJ 176/2022, além das alterações produzidas pela Resolução CNJ 540, na Resolução CNJ 255/18, que prevê a paridade na convocação e designação de juízes(as) para atividade jurisdicional ou para auxiliar na administração da justiça, direção do foro, composição de mesas, dentre outros. Em outras palavras, foi um período em que avançamos muito, graças ao empenho da Ministra Rosa Weber e da Conselheira Salise Sanchotene

Foi neste contexto que nasceu o Movimento Nacional pela Paridade no Judiciário,  um grupo plural e diverso, formado por magistradas e magistrados de todo o Brasil e de todos os ramos do Judiciário, que se uniram de forma independente em torno de pautas ligadas à igualdade substancial. Lutamos por um Judiciário efetivamente comprometido com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, livre de preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, conforme preceitua a Constituição da República e exige a democracia. Buscamos a criação de canais para diálogo, debate e discussão de temas relacionados à paridade e à maior participação de mulheres negras nos cargos de chefia e direção do Judiciário.

Após a entrada em vigor da Resolução CNJ 525/2023, passamos a acompanhar a paridade nos tribunais através de um radar alimentado por magistradas de todo o país.

Temos orgulho da força desse movimento que surgiu espontaneamente em um tempo de mudanças históricas. Como disse Rosa Luxemburgo “quem não se movimenta, não sente as correntes que o prendem.”

Sigamos!

Lívia Lúcia Oliveira Borba

Juíza de Direito-TJMG

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